Era uma velha cansada e generosa.
Cansou. Já não saia de casa e quase não escutava e pouco comia. Diminuíra,
encurvara e emagrecera era um pedaço de coisa velha e branca. Os filhos contrataram
um enfermeira que cozinhava e limpava a pouca sujeira que fazia.
A enfermeira tinha quarenta anos,
era calma e boa. Não posso dizer que se davam bem, porque a velha já não notava
o mundo ao seu redor, fosse uns anos atrás ela não suportaria o matraquear da
máquina de costura da enfermeira, agora gostava, sentia o vibrar do som e isso lhe trazia lembranças.
Viagens de trens antigas, sem histórias, mas com a sensação de está no banco
estofado percebendo a claridade e o mundo ao seu redor. Carlota, velha
professora de piano por mais de cinquenta anos, os sons sempre foram carregados
de significados e sentimentos. Por mais que se esforçara numa tinha conseguido
ser amiga de pessoas com a voz muito aguda ou arrastada. Ao ouvir os sons da
rua sabia com precisão a temperatura e a humidade do dia. Modulação, timbre,
altura e ritmo foram os seus instrumentos para entender o mundo.
Leila era forte e negra, todos
paravam espantados com o par que passeava nas ruas nas manhãs sem chuva. Para
Leila esse contraste nada significava, Carlota no braço sólido e macio de quem
se apoiava sabia ser lenta e silenciosa. No quarteirão pequeno sempre as mesmas
árvores floridas eram notadas e nomeadas por Carlota. Com tempo ela cansou de
falar e apenas parava e olhava demoradamente para cada uma das árvores com o
mesmo espanto original e nostálgico.
Os sonos ficaram compridos e a
comida cada dia mais rala. No apartamento quando não estava dormindo, Carlota
sentava-se em sua poltrona em frente a janela e ficava horas vendo o vento
balançar a cortina de crepe branca. Leila não sabia mas aquele crepe
acompanhava Carlota a muitos anos, na casa grande, na pequena e agora no
apartamento. Carlota não prestara maior atenção, não era dada a afetos, o crepe
veio junto porque veio, podia servir e acabou servindo em uma janela ou outra.
Agora estava meio manchado e a luz do sol passava de maneiras diferentes em
cada centímetro do pano.
Carlota imaginava o som do vento do
crepe. Pensava na associação feliz entre peso e maleabilidade que o crepe
possui, deixando-se estofar para depois voar arrebitado. Refletia também sobre
a estrutura atual do tecido, afinal, o pano tem uma história que fazia soar de
um modo pessoal e único. Encontro com o sol, o vento e a água, de quantas
lavagens já sofrera para começar tudo de novo de forma bem diferente.
Leila sabia que a velhinha estava
perto do fim, aceitava mais não conseguia imaginar que ela sofria. Não havia
muito o que fazer mas esse pouco ela faria. Se a audição da velha não mais
existia, Leila sabia que sua visão continuava boa ao se encantar com cada nova
florada e ficava imaginando como ela poderia sofrer vendo aquela cortina velha.
No dia seguinte comprou com seu próprio dinheiro uma nova e levou Carlota para
ver, quando foi para cozinha pegar uma bandeja com um copo de água para os remédios da tarde, ao voltar Carlota já não mais respirava.