domingo, 27 de julho de 2014

RAÍZES DA VIOLÊNCIA


            No imaginário coletivo, a imagem do brasileiro cordial remete a figuras idealizadas: paz e solidariedade. Nada mais distante de nossa realidade histórica. E nada mais avesso a visão de Sérgio Buarque de Holanda, pensador que resistiu como poucos a nossa prodigiosa autoindulgência, mantendo acessa a verve crítica. Em Raízes do Brasil, que neste ano completa 78 anos de publicação. O brasileiro seria cordial porque é avesso a formalidade, aos ritos de sociabilidade, aos limites, a disciplina das regras e dos princípios abstratos.



            A natureza do brasileiro induziria a expansão dos sentimentos, estendendo as lealdades privadas à esfera pública. Essa hipótese interpretativa ainda seria aplicável ao Brasil contemporâneo? De que modo esse debate nos ajudaria a compreender a violência brasileira hoje? Um jovem estudante que aprende na escola que vive num país democrático e vai a casa onde sua mãe trabalha sem carteira assinada, usa o elevador de serviço e não tem hora certa para sair se sente confuso. Sua mãe é considerada parte da família que trabalha e mesmo sem direitos trabalhistas é ajudada pela patroa quando passa por situações difíceis, mas nada lhe é garantido. 



            Sai o salario, entra a ajuda; sai a negociação entra o pedido; sai o contrato fica a palavra. Nosso problema hoje, não reside propriamente na cordialidade; a raiz da nossa violência patológica reside na dualidade, na ambivalência, na dupla mensagem. Hoje o capitalismo avançado convive com o patrimonialismo tradicional. No campo dos mais favorecidos pode-se jogar segundo conveniência da ocasião com os dois modelos. Nas classes populares pode-se também jogar com esse dois modelos, um dos resultado desse jogo conduz a violência que enseja um individualismo predatório, sem culpas e freios. Embora a violência não seja patrimônio das classes populares, a corrupção tem se mostrando o braço mais extenso da nossa violência.




            Buarque nos deu régua e compasso por isso não acho possível analisar a intensidade da violência brasileira sem penetrar no espírito de seus agentes. As personalidades extraordinariamente violentas e corruptas que povoam o Brasil são uma resposta a esquizofrênica ambiguidade a que são submetidas, afinal a dupla mensagem causa um desequilíbrio considerável.

sábado, 26 de julho de 2014

MULHER OBJETO


Ontem fui à farmácia, vi um cartaz bem interessante. Uma mulher nua em tamanho natural entre as gôndolas da farmácia. A imagem não choca os compradores, nem as compradoras de aspirina, em seu corpo há pequenos botões que reproduzem um sofá capitonê, ela é metade mulher, metade objeto. Daí pensei deixar de ser pessoa é muito fácil. Biografias, amores, medos, conquistas profissionais, nada garante acesso permanente a categoria de pessoas.



No Segundo Sexo Simone de Beauvoir já tinha nos avisado que não se nasce mulher, torna-se. Mas eram perigos mais abstratos que a preocupavam. Para tornar-se e manter-se mulher hoje é necessário, antes ou no mínimo, ser jovem, ou parecer jovem. E para isso existem botox, fios, incisões, cânulas, sugadores. Existem cirurgiões, dermatologistas, nutricionistas, preparadores físicos, massagistas e um público ávido por isso.


Todas queremos, é claro, ser jovens e bonitinhas. E todas somos pessoas não importa se velhas ou feias, mas há quem não saiba disso. Algumas se orientam por cartazes de farmácia ou por uma infinidade de assuntos semelhantes que se perdem no caminho. Há histórias drásticas de mulheres que não conseguiram enxergar a imagem completa e se tornaram só uma parte dela. Pernas, bundas, bocas ou olhos azuis.


São tempos passivos em matéria de reivindicação da mulher. É significativo que uma mensagem publicitária se permita espetar botões de estofado num corpo feminino. Talvez não fosse tão tranquilo tratar assim o corpo de um gay ou de um negro. As voltas com reclamações urgentes não tem a mesma paciência com brincadeiras de mau gosto e não se deixam desrespeitar com tanta docilidade. Nossas ancestrais feministas, como Simone de Beauvoir, nos anos 40, Betty Friedman, nos anos 50, Carmen da Silva, nos anos 60, Gloria Steinman, nos anos 70, só para ficar apenas nas clássicas, mereciam um público mais grato a seus esforços.


quinta-feira, 24 de julho de 2014

NARA LEÃO INTERPRETAÇÃO APURADA E OUSADIA MUSICAL


            Nara Leão foi considerada musa da Bossa Nova, sua interpretação da música A Banda é magistral. Tinha de 14 para 15 anos quando o apartamento de seus pais na Avenida Atlântica, em Copacabana no Rio de Janeiro, virou ponto de encontro dos amigos, todos mais velhos que ela que passavam as noites tocando violão, compondo e conversando sobre música. Sylvia Teles, Roberto Menescal, Carlos Lyra e Ronaldo Bôscoli eram uns dos frequentadores mais assíduos das famosas reuniões. Pelas quais também passavam Tom Jobim e João Gilberto. Tudo isso quando a Bossa Nova começava a nascer.



            Nara Leão não foi musa apenas da Bossa Nova, foi uma artista que marcou a música brasileira. Foi musa da música de protesto e da tropicália. E essa é uma das suas características mais marcantes, já que passou 20 anos cantando quando era, na verdade soprano: a de não se prender a formato algum. Em 1966, rompeu com a Bossa Nova, período que coincidiu com o fim do seu noivado traumático com Ronaldo Bôscoli.




            Nara Leão foi uma das grandes mulheres do cenário artístico nacional. Fez o que quis da sua vida, da maneira que quis, com ferrenha dedicação em tudo. Deixou a carreira de lado para se dedicar a maternidade, escolheu seus relacionamentos a dedo, fez todos os discos que teve vontade, mesmo indo contra a corrente, lançou moda, atacou a ditadura, estudou psicologia. Cantou samba, Bossa Nova, cantigas de roda, chorinho, música popular, americanas, música de seresta, protesto e até música dançante. Lutou como pode por sua independência, pelos seus ideais e pela vida, a única batalha que não conseguiu vencer, vencida por um câncer em 1986.

segunda-feira, 21 de julho de 2014

A ARTE DO ESQUECIMENTO


            Se procurarmos o significado da palavra memória encontraremos que se trata de uma faculdade que retém conhecimentos e experiências passadas. Esquecimento por oposição é a incapacidade de reter informações, com um certo descontrole. Por causa da nossa necessidade de controle acabamos valorizando mais as lembranças do que os esquecimentos. Uma agenda de esquecimento seria um empreendimento paradoxal, pois o esquecimento não permite listas, planos, ou cronogramas. Por que então querer esquecer?


            A vantagem de olhar para o passado é a oportunidade de compreender e experimentar esse passado como nosso. Em geral tendemos a olhar para a história como um processo onde não temos nenhuma participação. Olhar para o passado nos ajuda a lembrar que somos também a nossa história. Isso só é ruim quando feito de forma excessiva. Supervalorizar a memória pode, às vezes, significar falta de perspectivas para o futuro. Para o futuro se realizar é preciso as vezes esquecer o passado. O esquecimento é condição de possibilidade de tudo o que é grande, saudável e nobre no homem.



            Saber selecionar o que deve ser esquecido para poder se concentrar no que pode ser realizado, eis o segredo das grandes ações humanas. Parece que nossa época está sofrendo de um excesso de sentido histórico de um exercício desmedido de memória. Um homem que nunca esquecesse ficaria doente e enfraquecido. Esquecer não significa simplesmente apagar da mente e da vista, mas ter a força de recriar a memória de reinventa-la, libertando-se das interpretações oficiais e canônicas e partindo para a criação. A memória pode até ajudar a conservar a vida, mas só o esquecimento pode contribuir com a sua regeneração.

quinta-feira, 17 de julho de 2014

HANNAH ARENDT E A BANALIDADE DO MAL


Vi recentemente o filme da Hannah Arendt (2013) de Elisabet Van Trota a filósofa que da nome ao filme é autora de uma das mais importantes obras do século XX. Arendt para mim sempre foi uma figura dura, gostei particularmente do filme por ter retratado seu lado mais humano. Como uma professora que tem um trabalho acadêmico, boas relações com seu alunos, uma mulher feliz no casamento, mas com firme postura e decisões bem recortadas diante da vida. O enredo é centrado na época em que Arendt escreveu seu polêmico livro Eichemann e Jerusalém. O filme retrata sua viagem ao julgamento do carrasco nazista capturado na Argentina e julgado em Jerusalém em 1962.



            O que se vê é a polêmica que a produção do seu texto provoca ao desmistificar Eichemann como um louco sanguinário. Sua percepção a cerca desse homem como uma pessoa comum causou mau está entre seus amigos, comunidade acadêmica, judeus e muita gente que não compreendeu sua postura. Ela dentro de uma postura filosófica descompromissada com qualquer tipo de facção, ideologia ou religião, se abstém de personalizar o caso. Admiro sua postura porque ela não usava sua condição de judia como superior a de pensadora.



            Os que se posicionaram mais ofensivamente contra sua tese não a compreenderam, porque o seu caráter é difícil. O praticante do mal banal seria um cidadão comum, que não assume uma postura deliberadamente maligna é aquela pessoa que ao receber ordens, punha em funcionamento a máquina de morte do sistema nazista. Arendt retratou Eichemann como alguém vazio incapaz de pensar que apenas repetia clichês sem qualquer tipo de consciência. A banalidade do mal seria algo tão sério que quando ocupa grupos sociais e políticos ocupa espaços institucionais. 




            Trata-se de um filme denso, mas, uma biografia de alta qualidade ao retratar a personagem por suas ideias e não somente por sua vida pessoal. No Brasil, por exemplo, como se daria a banalidade do mal? Através da naturalização da corrupção da homofobia e de outras práticas excludentes. Filme profundo de ritmo lento, mas de excelente qualidade provando que o cinema é muito mais do que mera diversão.